terça-feira, novembro 24, 2009

Cena II:

(senta no chão ao lado de uma senhora que olha para trás incessantemente)

Ela – Você não deveria se preocupar tanto com suas crises. Elas podem acabar te consumindo.
Desconhecida - No único segundo que dormi eles tiraram tudo de mim.
Ela – Você não deveria se preocupar tanto com suas crises. Elas podem acabar te consumindo.
Desconhecida – Você é tão jovem e consumiu-se antes de mim.
Ela – Você não deveria se preocupar tanto com suas crises. Elas podem acabar te consumindo.
Desconhecida – Você existe mesmo? Não vejo possibilidade na perspectiva. Vamos, me entregue essa desconstrução.
Ela – Você não deveria se preoc... pausa para um suspiro. Bom dia. A senhora têm horas, por favor?
Desconhecida – São 15 horas e 15 minutos.
Ela – Muito obrigada. Faz uma tarde agradável hoje, a senhora não acha?
Desconhecida – Esse vento é de chuva. Mas é até bom, minhas plantas estão morrendo e nós ainda estamos na primavera...
Ela – De fato, estamos no outono, quase no inverno. Ontem geou.
Desconhecida - Oh... Oh! Então eles me enganaram por todos esses anos! Eu nunca esperei algo assim de alguém com tanto caráter!
Ela – Quando eu enganei não tinha caráter algum.
Desconhecida – Então estava apenas cumprindo seu papel.
Ela – Quem você está esperando?
Desconhecida – Agamenon, Porfídio, Tandara, Gilsa, Henilácia, Fenilalanina, Elastano e Zelda.
Ela – Deixe-os viver! Eles não estão suficientemente agasalhados.
Desconhecida – Nem eu estou.
Ela – Você sempre esteve.
Desconhecida – As suas lógicas me deixam confusa.
Ela – Esse momento já passou. Eu senti meu ar sendo sugado com um aspirador de pó nos últimos minutos. Mas é a sensação.
Desconhecida – Eles nos extorquem o tempo todo. E eu pedi para não ser afetada...
Ela – Fecha-se o ciclo.
(transição na cena. Retorno – Elas se esbarram na rua.)
Ela – Desculpa.
Desconhecida – A culpa foi minha. Se machucou?
Ela – Minha visão está turva.
Desconhecida – Deixe-me fazer um curativo.
(Ela senta e chora)
Desconhecida (histérica) ­– Ah meu deus, ah meu deus! Eu não sabia, eu não sabia! Eu... eu... Todos os dias é a mesma forma, é a mesma... a mesma... Eu percebo todas as cores, as texturas, viajo através daquilo que... daquilo... e caio. Vou aos extremos, ah meu deus, eu quero me livrar desse desespero byroniano. Me esvazie. Quero acordar e pensar no meu trabalho medíocre, no marido medíocre, na vizinha medíocre, na novela medíocre, na família medíocre, na vida, vida medíocre e completamente vazia de significação. Se eu viver pela subsistência eu largo todo esse turbilhão desesperador e sumo como reflexão. Por favor, me desfragmente. Minha cabeça dói, e eu durmo mais feliz do que acordo, que ainda é mais alegre que a forma que vou dormir na noite seguinte. É uma sucessão dramática digna de mal do século. Mas não... ah... (acalmando-se) eu percebo. Ah sim, eu vejo que, no fundo, é a metafísica. Existem mil ampulhetas deslizando suavemente por entre meus dedos e eu devo, devo permanecer estática. Perdão pela falta de compreensão dessa maestria.
Ela – Você não deveria se preocupar tanto com suas crises. Elas podem acabar te consumindo.
(Desconhecida olha para trás várias vezes)
Ela – Você respira em intervalos quebrados.
Desconhecida – Eu acabei de morrer. Você não percebeu?
Ela – Não sei. Para mim você está completamente viva.
Desconhecida – A sua análise é superficial.
Ela – E a sua é exagerada.
Desconhecida – Sua percepção não é maior que a de um camundongo.
Ela – Vou entender como um elogio.

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